Um minuto de atenção para o cronista que não sabia escrever

Paula Diniz

Foi a exposição “As aventuras da linha” do judeu romeno Saul Steinberg (1914-1999) e seus quase 60 anos na revista The New Yorker que, a princípio, me conduziram de casa à Pinacoteca numa tarde chuvosa de São Paulo – além das recomendações de Daniel Piza. Os 111 desenhos ali expostos foram criados de 1940 a 1960 – período de projeção internacional do artista. A obra de Steinberg influenciou importantes cartunistas e ilustradores brasileiros, como Ziraldo, Jaguar, Millôr e Cássio Loredano. Coisa pouca não havia de ser!

Confesso que os traços à primeira vista simples e engraçados de Steinberg são muito mais perspicazes e consistentes – historica, politica e sociologicamente – do que eu poderia imaginar. Steinberg nasceu no dia 15/06/1914 numa família judia, na Romênia, semanas antes de estourar a primeira das grandes guerras mundiais.

Em um documentário produzido na ocasião dessa exposição, a curadora Roberta Saraiva diz: “Steinberg foi um homem fora do lugar e que de fato viajou o mundo. Olhou o mundo inteiro com os olhos de um cronista. Isso eu acho fora do comum. E isso aparece no caráter autobiográfico que as obras dele têm quando ele retrata esse ‘homem no mundo’; um homem sem lugar no mundo.”

Saul Steinberg estreou nos museus em 1946, em Nova Iorque. Suas primeiras exposições reuniam obras que proporcionavam ao visitante a visão dos Estados Unidos pós-guerra capturada a partir de uma perspectiva estrangeira, e registrada com minúcia – sempre! Em São Paulo, a última mostra do artista foi em 1952, no MASP.

Na Pinacoteca, a primeira ilustração que me prendeu por alguns minutos foi, imediatamente, “Mulheres”. Observando os outros visitantes, notei que um risinho logo estampava seus rostos – impossível saber, mas creio que tanto pelo viés cômico quanto pela inteligência que um desenho relativamente simples (considerando os recursos usados) demonstra ao retratar tantas características expressivas e nítidas aos olhos atentos. Personagens e época desnudados por baixo das plumas. Cada detalhe é explorado por Steinberg, nada escapa ao seu olhar agudo:  roupas, acessórios, chapéus enormes, saltos-agulha altíssimos, meia-calça, maquiagens.

Mulheres, 1950 / The Saul Steinberg Foundation

Mais de sessenta anos após sua criação, “Mulheres” ainda conserva uma curiosa contemporaneidade. Dotada de seus *super* cílios, equilibrada em plataformas altíssimas, embrulhada em casaco e chapéu enormes, a senhora mais “espalhafatosa” do desenho lembra a Lady Gaga!

Peruas pomposas ostentando suas plumas adquiridas. Foi assim que Steinberg ilustrou (ridicularizou?) as burguesas americanas. Ou, talvez, tudo o que ele fez foi apontar uma lente de aumento para a sociedade de aparências, prepotências e materialismo exacerbado dos EUA.

Capa – The New Yorker, 1971

Como disse o ilustrador Cássio Loredano no documentário citado acima, “Steinberg se atém ao essencial. Não enfeita. Vai na mosca.” É na capacidade de transmitir peculiaridades com recursos tão simples que Steinberg registra sua marca. Ele fala do homem, dos costumes, do jeito das pessoas. Tenta captar o que elas têm de mais forte, assim como faz com as coisas, com os ambientes e objetos, sempre em busca do estilo que mais se aproxima daquilo.

É uma caricatura, mas não é uma deformação das formas. É uma caricatura no sentido de enaltecer uma característica e de chegar numa verdade que às vezes é até mais evidente do que simplesmente olhar para a realidade. E ele busca isso usando a metalinguagem, brincando com os estilos, fazendo paródia de estilo.” – Daniel Bueno, ilustrador e autor de mestrado sobre Steinberg na FAU – USP.

Seus traços precisos e limpos transmitem sutileza e uma certa “displicência despojada”. Dão um ar despretensioso aos desenhos, embora sem camuflar suas pretensões. Tudo é sugerido pelo olhar aguçado desse estrangeiro – e como típico estrangeiro, parece sentir-se um estranho no ninho caricaturesco que retrata.

Passport, 1951 / The Saul Steinberg Foundation

“Ser imigrante era uma condição que Steinberg parecia preferir e que ele levou muito tempo para superar. Seu auto-retrato – com a própria impressão digital no lugar do rosto – talvez tenha um sentido mais profundo do que ele imaginava.” – Harold Rosenberg, 1978

Casacos de pele, 1951 / The Saul Steinberg Foundation

Surpreendente pela leveza, humor e perspicácia, “Casacos de pele” atesta que Steinberg não deixa os detalhes escaparem – nem os da cidade, nem os da moda, dos costumes, da época. Por outro lado, a simplicidade e precisão de seus traços remetem o observador a uma viagem em tempo e espaço – algo que nem a exatidão fotográfica dos renascentistas conseguia proporcionar.

Os padrões de tracejados definem a identidade de cada uma das quatro senhoras quase afogadas em seus gordos casacos de pele (ou penas). Elas desfilam em uma calçada com rachaduras evidentes. As rachaduras sugerem metáforas interessantes sobre a situação da burguesia americana,  frequentemente satirizada no trabalho de Steinberg.

 Nem os objetos escapam dos traços impiedosos do artista. Em seus desenhos, os automóveis americanos mais parecem carros alegóricos.

Taxi, Saul Steinberg

 Suas linhas são inteligentes demais – às vezes usa uma única linha. Ao satirizar, Steinberg provoca (risos, raiva, vergonha, simpatia…) e nos convida a refletir sobre a vida que levamos. Suas linhas pedem e merecem, ao menos, um minuto de atenção.

Homem no bar - Saul Steinberg

 Steinberg também cria animais e insetos cômicos. Alguns de seus pássaros lembram pavões alienígenas. Inflada, com o bico semiaberto e os olhos atônitos, essa galinha é bastante contemporânea, como as de granjas que estressam e hiper alimentam seus franguinhos.

Galinha - Saul Steinberg

Em “Duas mulheres brigando”, as ‘peruas’ têm seus braços e pernas embaralhados em meio a penas e plumas. Seus traços cômicos são animalescos e alienígenas. Como numa típica luta feminina, as mãos de uma estão, logicamente, nos cabelos da outra!

Além da dupla curinga – traço preto + papel branco –, Steinberg também usou tintas coloridas (aquarela) e desenhou sobre fotografias. Os desenhos em preto e branco, no entanto, na minha opinião, ainda são o legado mais característico da sua obra.Por quê? Pela limpeza e simplicidade – sua marca primordial.

S.T. 1949 / The Saul Steinberg Foundation

No mínimo estranhos também são os caubóis de Steinberg: seres ornamentados com penduricalhos, armas e outros objetos que parecem membros de seus corpos angulosos.

Cowboys, 1952 / The Saul Steinberg Foundation

Aliás, desconstruir traços humanos parece ser uma estratégia de Steinberg. Ele costuma criar pessoas angulosas ou exagerar algumas partes (nariz, peitos, nádegas, silhueta…) para que os corpos remetam a objetos ou animais.

 Por outro lado, em alguns desenhos de animais os bichanos possuem traços humanos: olhares, expressões, gestos e… narizes!

Gatos - Saul Steinberg

Os “Quatro cavalheiros” (1946) vistos de relance parecem ter seus corpos deformados ou caricaturados até que se enxergue o ilusionismo criado no desenho, entre cavaleiros e seus respectivos cavalos.

Vale se ater aos detalhes e se esquecer do relógio para captar a riqueza da arte de Steinberg. Para mergulhar no espírito desse artista, aqui vai um relato quase debochado (e muito engraçado) que ele escreveu sobre sua vinda ao Brasil.

Certa vez estive no Brasil e subi o rio Amazonas. Estive em lugares muito curiosos como Pernambuco, Rio, São Paulo. O que mais me impressionou aconteceu numa praia distante, acho que em Pernambuco, talvez no Recife. Primeiro vi um bode verde, depois vi uma galinha verde; depois, um cachorro verde. Era uma coisa misteriosa, ver tantos bichos verdes. Acabei descobrindo a razão. Havia uma grade recém-pintada e os bichos tinham se esfregado na tinta da cerca. Foi o que mais me impressionou. Eu devia falar sobre a injustiça social no Brasil, sobre a arte, o clima, sobre situações glamorosas, como a minha exposição por lá. Mas o cachorro verde, a galinha verde e o bode verde foram as coisas realmente essenciais.” (Recife, 1952)

Ilustrações de desfiles foram recorrentes em suas obras de 1950. “Desenhar desfiles é uma boa desculpa para ficar olhando para as pessoas”, dizia. Para Steinberg, os desfiles, muito frequentes nos Estados Unidos, eram pura autocelebração. São sacadas como essa que fazem desse romeno um artista clássico. Clássico no sentido de que suas criações resistem ao tempo, não perdem a contemporaneidade.

O humor cítrico, fino e irônico de Steinberg indica um olhar agudo e atento às barbaridades que estão de baixo dos nossos narizes e não vemos – ou por distração, ou porque já estamos imunes a elas. A leveza, a limpeza e o humor de seus desenhos não os tornam levianos, pelo contrário, possibilitam focar a atenção no que é essencial; os tornam crônicas políticas e sociais muito convidativas e certeiras.

Steinberg captou o espírito da época em que viveu, e ainda nos toca e induz à reflexão. Dizia-se um escritor que não sabia escrever. Mas desenhava. Satirizou como ninguém os passaportes, os documentos e toda parafernalha da burocracia. Segundo Ziraldo, Steinberg era um judeu tão neurótico que vivia com passaportes, passagens e alguns diamantes no bolso, pronto para sair dos EUA a qualquer momento.

The Passport, 1954 / The Saul Steinberg Foundation

Por mais que não escrevesse, seus desenhos funcionam como crônicas. Coincidência ou pura afinidade, ele foi muito mais amigo de escritores (e dos grandes, como Saul Bellow e Nabokov) do que de artistas com ele.

Então eu digo, finalmente, que a exposição de Steinberg na Pinacoteca é uma viagem (feliz!) pelas aventuras bem humoradas de um cronista sagaz que não podia escrever. Não que lhe faltasse habilidade para isso. O fato é que somente suas linhas sagazes e certeiras lhe permitiriam transmitir com tanta perspicácia, todo o espírito de uma época, com os movimentos, nuances e sutilezas que escapam às palavras.

“Se os escritores soubessem desenhar, não haveria literatura.” (Saul Steinberg)

 *A exposição “As aventuras da linha” segue na Pinacoteca de São Paulo até dia 06/11/2011.

PD

 

 

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