Desde a semana passada, viver em São Paulo tem sido uma experiência intensa e inquietante. Sirenes e helicópteros são cada vez mais frequentes – agora mesmo ouço um rondando por aqui. Nunca vi tantos policiais e viaturas na Av. Paulista. Munidos de balas de borracha, cacetete e gás lacrimogêneo, lá estão os homens fardados, incumbidos de simbolizar a “mão forte” do Estado. Aqui na paulicéia, portar vinagre (que ameniza os efeitos do gás lacrimogêneo) tem dado cadeia. Um jornalista da Carta Capital foi preso por esse motivo. Enquanto isso, políticos corruptos circulam por aí, portando grana pública desviada.

C’est la vie? Talvez não mais. O povão tem se mostrado bem menos apático que de costume no Brasil, o que tem dado um grande trabalho para a “mão forte”.

Depois de mudar o canal da TV ou virar a página do jornal, há quem diga que a cidade está um caos, tomada por marginais e jovens vândalos, rebeldes sem causa…

Ao voltar para casa ontem a noite, puder ver, literal e metaforicamente, todo nosso lixo revirado, à mostra na avenida símbolo do poder econômico do país. Ver a poderosa Paulista coberta por seu próprio lixo foi forte, digamos.

Forte ver que o lixo vem à tona até na Paulista. Forte porque o lixo da Paulista é meu, é seu, é nosso! É também de quem mora na periferia da cidade (bem longe dali), até mesmo de quem vive em outro estado ou país. Hoje está mais claro: ninguém está de fora. Aliás, “dentro” e “fora” são conceitos tão vazios quando o assunto é política e lixo.

Arriscado ser simplista ao classificar o que está acontecendo em São Paulo como “triste”, “revoltante”, “feio”, “bonito”, “certo”, “injusto”, “epifânico”, “puramente catártico”… Ok, talvez seja tudo isso junto e misturado. Simbolicamente, cenas como essa, da Paulista coberta por seu próprio lixo, são tão poderosas e complexas que não cabem em adjetivos.

Antes de saber o que fazer com os envolvidos nas manifestações e com os “estragos” causados por eles – manifestantes, policiais, vândalos, governantes, autoridades, platéia no sofá, civis “inocentes” – é preciso entender o que está acontecendo, refletir sobre como e por que chegamos até aqui. Porque não existem inocentes – certo, civis? Assim como não existem “envolvidos” e “não envolvidos” quando o assunto é transporte público. A questão do passe (livre ou pago) é de todos, seja você um usuário de metrô, ônibus, automóvel, moto, bicicleta, patinete, jato, helicóptero, cadeira de rodas ou suas próprias pernas.

A cidade é o espaço por onde todos circulamos. Vale um snorkel para observar com mais profundidade as águas que têm rolado por aqui . *Falando em profundidade, aqui vai um editorial da Folha de S. Paulo. Tão raso que me espantou: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06/1294185-editorial-retomar-a-paulista.shtml .

A ideia não é criar alas de simpatizantes para segregar ainda mais manifestantes e policiais. Não é o caso de simplesmente escolher para quem torcer.

Quem se aventurar a mergulhar para observar o que sustenta a parte visível do iceberg das manifestações entenderá que não são os óbvios 20 centavos – mas também. A base desse e de todos os conflitos atuais mundo afora é essencialmente a mesma: uma mentalidade dominadora e segregacionista que muitos de nós ainda mantemos, propagamos (sem refletir) e perpetuamos (sem nos dar conta).

Agora pegue as suas lupas:

O paradigma dominante ainda é “poder e controle”. Estratégias: segregação e ridicularização do que é diferente de mim e atrapalha os meus interesses: tudo o que é muito diferente e não se ajusta aos meus moldes é propagado como inadequado e perigoso. Assim fica mais fácil homogeneizar para controlar e dominar.

O problema é que muitos ainda não sacaram que vivem na matrix desse modelo. Suas escolhas são frequentemente baseadas em padrões externos às suas próprias vontades.

Vontades? Quais são mesmo as minhas próprias vontade?

O lado bom da história é que esse modelo mental neocolonialista, neoextrativista, hierárquico, causador de segregação e sofrimento está cada vez mais caquético e enfraquecido simplesmente por ser inadequado às necessidades humanas mais fundamentais.

Esse jeito controlador de viver caminha obstinada e cegamente “sempre avante!”, “sempre em frente!” – progresso, desenvolvimento e crescimento a qualquer custo são seus mantras.  O que a ala do desenvolvimento a qualquer custo ainda não sacou é que a natureza (inclusive a nossa natureza humana) funciona em ciclos. Ciclos têm começo, meio e fim; recomeço, meio e fim; recomeço, meio e fim… Para renascer, os ciclos nascem e morrem. Se morrem, têm limites. Têm fim. E recomeço…

Por ignorar ou negar seus próprios limites, o modelo neoextrativista neocolonialista engrenou numa autofagia irreversível. Ao ruir (mesmo sem se dar conta), flui para uma transposição natural e inevitável. Isso agora pode ser observado no Brasil, seja por meio de manifestações – violentas ou pacíficas -, seja através de escolhas e atitudes cotidianas – grandes ou pequenas – que vão curando e fortalecendo o tecido das relações que nos sustentam como seres interdependentes que somos.

Sim, somos seres interdependentes! Fato que o pensamento segregador esquece de considerar.

As imagens das manifestações em São Paulo podem lembrar, para alguns, apenas um filme já visto e reprisado várias vezes. Para esses, fica a dica: levante da poltrona, amigo espectador! Desligue a TV, deixe os jornais e caia no “samba” – ou o “samba” cairá em você. Caia como puder, mas caia! Cair é nada mais que cair na real. Refletir. Repensar. Reformar. Transformar. Transmutar. Verbos poderosos que ficam mais poderosos ainda quando usamos no dia a dia em primeira pessoa.

O que está acontecendo hoje no Brasil tem a ver com cada um de nós.

Para a  “mão forte” do Estado, um simbólico aperto de mãos de dispensa. Poder e controle só são bons quando aplicados por nós a nós mesmos para garantir poder e controle sobre nossas próprias vidas.

Aos que se envolvem com a cara e a coragem nesse mundão mutante do qual somos todos criadores e criaturas, que saibamos conduzir e canalizar nossas preciosas indignações com menos violência e mais diálogo… bem mais diálogo e acolhimento.

Saravá!

Paula Diniz

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