Ela - no vidro

O amor, o humano e seus artifícios

Tenho lido que o filme “Ela – Uma história de amor”, de Spike Jonze, trata da relação entre o homem e a tecnologia, e que a tecnologia é usada para potencializar o isolamento humano. Tive algumas outras impressões sobre o filme e esse tema, já bastante familiar a nós que vivemos constantemente plugados aos nossos computadores, notebooks, tablets, smartphones, etc etc.

Logo no começo, pensei: esse filme vai falar sobre a tecnologia que protege os mais medrosos das frustrações dos relacionamentos. Sim, o ponto de partida é esse, mas Spike, também diretor de “Quero ser John Malkovich” (1999), vai além.

Com o fim do casamento, a vida de Theodore (Joaquin Phoenix) segue sem fortes emoções. Uma rotina emocionalmente tão asséptica quanto os espaços que frequenta: seu escritório e sua casa são ambientes quase frios, não fossem alguns detalhes vintage nos ambientes e nas roupas dos personagens (remetendo ao passado, às memórias…). Em geral, as relações de Theodore são superficiais, “esterelizadas”: pouca escuta, pouca profundidade, pouco envolvimento… Pouco perigo.

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Eis que Theodore instala em seu computador um novo sistema operacional altamente avançado e intuitivo chamado Samantha.

“Devo crescer através das minhas experiências, exatamente como você”, diz Samantha, com a voz sexy, levemente rouca de Scarlett Johansson.

Um sistema operacional capaz de me entender imediatamente. Não me exige nada, não corro o risco de me frustrar nem de ter que lidar com conflitos. Um alívio, uma zona segura para Theodore nesse momento de recolhimento das emoções e economia dos afetos.

AMOR e MEDO – comparsas inseparáveis 

Poupados de lidar com conflitos (inerentes ao processo de desenvolvimento humano), corremos o risco de nos transformar em adultos emocionalmente imaturos, apartados do contato com nossas próprias sombras e da fértil relação com elas. Até onde sei, o contato com a própria sombra só é possível através da relação com um ser semelhante – minimamente semelhante para ser espelho.

Na companhia de Samantha, Theodore passa a viver aquela dinâmica de “esquizofrenia artificial” que habitantes das cidades grandes (ou nem tão grandes assim) conhecem bem: ele anda pelas ruas falando, rindo e gesticulando sozinho com seus fones de ouvido, isolado em sua bolha impenetrável.

Bolha segura?

Bolhas podem estourar a qualquer momento.

E o que é seguro, afinal?

Samantha, uma voz artificial que me acompanha e me poupa de estar a sós comigo mesmo.

Samantha, posso te dizer tudo o que penso e sinto. Sei que você vai me aceitar e nunca irá me magoar. Samantha, parece até que eu inventei você. Não estou sozinho e ainda assim, “acompanhado”, posso seguir no conforto dessa zona protegida como o menino frágil, sensível, inseguro e magoado que agora quero ser.

Samantha, você não tem um corpo, e eu amo a sua voz inteirinha, da cabeça aos pés. Os toques macios dos seus pontos de vista e a doçura dos seus comentários me encorajam a me amar novamente, pouco a pouco, de levinho, sem muito esforço, sem ao menos ter que encarar aquela faxina emocional de que (no fundo) sei que preciso, mas não quero, não quero mesmo. Maybe tomorrow.

Sabe, Samantha, a mulher com corpo é tão ensimesmada. Me diz como devo beijá-la, tem medo de se machucar, se protege demais, me chama de estranho e me dispensa antes mesmo do sexo rolar. Samantha, não é fácil. A mulher com corpo é frágil, insegura, instável, complicada…

Prazer sem Dor 

Sentimentos dóem sim e às vezes machucam pra caramba. Melhor seria ficar livre da dor. Mas tenho um corpo e sinto tudo. Tenho sentidos que não me dão escolha: preciso e quero sentir.

Começo a perceber que até com você, sistema operacional, posso estar sucetível. Desde aquele “eu te amo” sei que estou nas suas mãos. Afáveis mãos invisíveis…

“Posso checar seu hardware?”

Vá em frente. Em você, eu posso confiar. Com você, eu estou no controle: posso ligá-la e desligá-la quando quiser.

Ela está sempre disponível,  sei que nunca irá me decepcionar.

Ela, insanidade socialmente aceita.

Ela, eu me distraio com você.

Até onde vai minha disposição para as relações humanas?

Até onde quero olhar para o que dói um mim? (a dor é um pedido de atenção)

Quanto estou disposto a mergulhar em mim e me aceitar por inteiro – minha luz e minha sombra?

Se até com um sistema operacional eu entro em conflito, aonde está o conflito afinal?

O filme também fala do amor na condição de amigo, da flexibilidade que a amizade traz em sua essência.

Samantha, meu querido sistema operacional, minha mente se expande com você. Você estimula minha imaginação, até mesmo os meus afetos, mas não pode afetar os meus sentidos.

Samantha, que decepção! Descobri que com você eu não tenho exclusividade, sou um homem ordinário como todos esses ao meu redor. Mas, Samantha, eu quero me sentir especial.

PARADOXOS que o filme desvela

Precisamos ~ desesperada ou esperançosamente ~ nos sentir amados. Seja através de um sistema operacional ou de um ser humano, vou criar o amor naquilo (ou naquele) que me parecer mais acolhedor. A ilusão da solidão (ou a crença nela) pode ser insuportável demais para eu dispensar a fantasia de um affair virtual. “É o que temos para hoje.”

Samantha diz: “Quanto mais pessoas eu amo, mais eu te amo. Ainda assim sou sua, sou inteiramente sua. Sou sua, mas não sou sua.”

“Estamos todos indo embora. Deixe-me ir”, diz Samantha.

(Muitos humanos dizem e se vão dessa mesma maneira.)

Paula Diniz

 

 

 

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